27 de outubro de 2008

DIA DO POETA

Aproveitando a sugestão da Joana para O DIA DO POETA, vou transcrever, não só alguns versos, mas um livro inteiro!...
Não se assustem, porque o livro é pequeno. Trata-se de um conto, com personagens que todos conhecem.

Edição de autor, em 1980, de apenas 500 ex., é muito pouco conhecido. Tem poesia e texto, e a sua leitura, inédita para muitos, é deliciosa...

Vou transcrevê-lo na íntegra.


Autor:
FERNÃO PIRES (é pseudónimo)
Título:
BUCÓLICA DOS TRÊS AMORES
Dedicatória:
HOMENAGEM AOS MEUS SAUDOSOS AMIGOS AFONSO LOPES VIEIRA e AMÉRICO CORTEZ PINTO
Iam os dois de abalada,
Numa longa caminhada,
Em busca do Mar Oceano;
Manhã fresca, perfumada,
Da quadra primaveril,
No florido mês de Abril.
Ele chamava-se Luís; ela, de nome, Helena. Nunca se tinham visto ou encontrado em qualquer parte, embora os antepassados dum e doutro tivessem certo parentesco. Luís era um rapaz guapo, desempenado e perfeito, na plena pujança dos anos, esperança prometedora de futuras glórias e desusadas proezas de amor. Vinha dos lados da vizinha Serra de Aire, de cajado e sarrão, aspecto corado e sadio, olhos profundos e sonhadores, de mal iniciado nas ardilosas e arriscadas artes de cupido. Deixara a Serra, queria ver o mar, cuja linfa lhe corria nas veias.
Ver o mar queria também Helena -, donzela cheia de encantos, corpo esbelto de linhas impecáveis, verdadeira escultura clássica, com os traços sensuais da mais sedutora e fresca tentação feminina. Vestida de serrana, arrecadas de oiro e chapelinho fenício de veludo na cabeça erecta, onde cintilavam duas estrelas que o próprio Sol invejava -, ela aí vai, sorridente e lesta, esmagando amorosamente, com os miniaturais pés, as ervas floridas das várzeas, na incerteza de quem não vê caminhos, em busca do Mar -, do Mar azul, onde há-de lançar seu impoluto e virginal corpo, a refrescar nele os ardores da Primavera e... do Amor.
Coleando entre arbustros e salgueiros, cada qual pelo seu rumo, sem nada conhecerem um do outro, embora com destinos semelhantes, Luís, mais ao Nascente; Helena, mais ao Ocaso, surgiu-lhes de surpresa um Castelo, antigo e solitário, enigma dum passado sem memória, onde as pedras tisnadas e as ameias em ruínas se quedavam mudamente, como um sinal esfíngico a apontar o céu.
Senão quando pararam, - Luís, de surpreendido; Helena, de susto. Sem prévio conhecimento e quase ao mesmo tempo, o jovem desviou seus passos, flanqueou de perto, pelo lado norte e num gesto de curiosidade, o vetusto monumento, beijando-lhe reverente e espontâneo, no sopé,as venerandas e tisnadas pedras. Gesto semelhante esboçou a moça, um pouco mais distante e tímida, tomando o flanco sudoeste.
Em volta, o silêncio, apenas quebrado pelo trinado de mil passarinhos em coro, e o campo imenso, coberto de boninas e variadas flores, formando tapete artisticamente tecido por mãos de fadas. De repente, na torre de menagem, dois corvos solitários, num bater de asas agoirento, grasnavam fortemente. Helena assustou-se, soltou um grito, e Luís, que, sem dar por isso, estava apenas a dois passos, correu em socorro, num gesto natural de cavalheirismo, e, num instante, achou-se com Helena nos braços, e esta, lívida de, agora, dodrado susto, nos braços hercúleos dum jovem de singular beleza e vigor, que nunca em sua vida tinha visto.
- Quem sois vós, linda donzela,
Encanto dos olhos meus,
Que assim vos vêem tão bela,
Neste encontro tão sonhado?!
Ai, que, ao vervos tão gentil,
Vestida de graças mil,
Já me sinto desmaiado,
E o coração a bater!
Feliz de mim, que sustento,
Em meus braços apertado,
Este tesouro sagrado,
Que jamais hei-de perder! -
E ela: -
- E tu, jovem robusto,
Em cujos braços caindo,
Senti um enorme susto;
E agora , neles recolhida,
Sinto Amor a convidar
A ficar-me adormecida,
Junto ao teu peito a pulsar?!
Feliz de mim, que encontrei,
Nos caminhos para o Mar,
Doçura que eu nunca esperei! -
E os dois, olhando em volta, não houvesse por ali indiscretos, a profanar aquele vespertino encontro, trocaram olhares e sorrisos, dum profundo misticismo amoroso, beijaram-se com ardor e estreitaram-se mutuamente, num prolongado abraço. Por toda a campina, a verdejar e a florir, o silêncio da tarde morna, quase a findar, com o Sol em agónicos paroxismos, a descair célere e afogueado, no Ocaso. Apenas os dois corvos, indiscretos e teimosos, continuavam a grasnar nas ameias do Castelo solitário.
- Mas, por favor, dizei-me o vosso nome,
E donde vindes só, por estas terras,
Sem medo que ocorresse lá nas Serras
Alguém, que em maus instintos se consome.
Pois vossa graça e louçania é tal,
Tão sedutor o vosso busto e geito,
Que eu creio não haver em Portugal
De vénus um retrato mais perfeito. -
- «Ser-me-ia mais grato, meu Amor (pois já agora vos não posso tratar de outro modo, vendo tanto carinho, generosidade e cavalheirismo da vosso parte), - ser-me-ia mais grato, digo, guardar para mim os segredos da minha origem e identificação. A minha estirpe nada tem de espectaculoso. Modesta e simples, em mim e nos meus antepassados, porque me haveria de empavonar com penas que não são minhas? Tomara eu poder com aquelas que me nascem no coração, por não ter ainda a quem o dar.
Nasci no campo, entre flores naturais e rústicas, da água que choravam os olhos das moças saudosas, quando os namorados partiam por aí abaixo, jogando o destino e a vida, na reconquista cristã do território ocupado pela moirama, que viria a ser Portugal. De baptismo, sou Helena, mas, lá na terra e por estas redondezas, chamam-me só Lena. Nascida em água, fiz-me corrente, e meu gosto é fazer bem, regando os campos, matando a sede aos passarinhos e aos namorados, e correr para o Mar imenso, no qual quero ser sepultada. Para lá dirijo eu agora meus passos, e, com tanta sorte, que vos vim encontrar aqui, se não me engano, a seguir o mesmo rumo. -
- «Sois então inda solteira?»
- «Solteira e donzela, com o coração livre, para o dar a quem o mereça» -
- «Que fortuna a minha, se fosse eu o afortunado!...»
Lena sorriu discretamente, olhando disfarçada e vaga a campina em volta, na qual se projectava a sombra do Castelo. Lá longe, no recorte do horizonte, o Sol vermelho-laranja, sumia-se de borco sobre o mar da Vieira.
Luís estreitou mais nos braços o flexível busto de Helena, beijou-lhe com ardor os olhos verde-glaucos e a boca de romã, e continuou: -
- «Pois eu, minha querida, também tenho que vos contar. Confidência pede confidência; e eu estou a ler nesses olhos que hei-de roubar, quando vos apanhar descuidada, uma pergunta complementar à minha.
Eu nasci em Fontes de água doce e nelas me transformei, logo ao nascer. Venho da raiz da Serra, assim a modos de pastor, como estais a ver, e aos pastores tenho eu matado a sede vezes sem conta. De Luís, meu nome de baptismo, se derivou sincopado aquele por que toda a gente me conhece: - Lis.
Gosto de percorrer as várzeas e os campos em flor, de brincar com moinhos e azenhas, e, quando me apetece, e, às vezes por partida, estendo-me por aí além, espapeirado, com as pernas e os braços alargados e alagados, para tocar nas pernas às raparigas desprevenidas, que querem atravessar e gritam de susto, julgando que as levo arrebatadas.» -
De súbito, Lena tomou um ar severo e fitou os olhos nos de Luís, numa expressão de tácita e amorosa censura.
- «Perdão, minha Lena! Não é bregeirice nem atrevimento meu; é apenas uma brincadeira inocente de quem não sabe estar parado, a não ser em açude... De resto, elas também gostam e acham-lhe graça.
Neste fadário e triste sina, o meu trabalho é correr sempre para o Mar, donde nunca regresso por terra, mas sempre pelo ar. Ainda não havia aviões e já assim fazia... -»
- «É curioso, que eu também faço a mesma coisa! Afinal, somos mais aparentados e semelhantes do que eu pensava...» -
- «Tanto pior», - acrescentou o Lis.
- «Porquê? - »
- «Porque, se o parentesco for muito estreito, teremos de «pagar letra» de consanguinidade...» -
Lena compreendeu a graça e riu a bom rir. Ali em volta as rãs que coaxavam nas ervas encharcadas, tomadas de susto, saltaram de pincho para o colo dos dois namorados.
Mas a noite caía célere, com seu manto escuro, a envolver de mistério o amor e as coisas, se não fora a Lua, em crescente, muda e propícia aos idílios de namorados, a projectar contrastados tons de luz e sombra sobre a natureza em repouso.
De comum acordo, Lis e Lena resolveram pernoitar ali mesmo, sobre o tapete rescendente de boninas e miosótis, debaixo do espaldar roçagante dos salgueiros, a tocar-lhes de leve nas faces afogueadas. Formaram açude e, mais aconchegados, continuaram a dialogar baixinho, em íntimas expansões de afectividade, que os rouxinóis, e só eles, acompanhavam, de entre a frança dos salgueiros, numa orquestração de inefáveis harmonias.
Mas, do alto do Castelo, ali bem perto, cuja silhueta negra se projectava agora mais viva, à luz baça do luar, sobre o campo adormecido, a voz dolente e profética duma misteriosa mulher, vestida de branco, espécie de moira encantada, ensaiava, em voz surdina, as trovas de bom agoiro, que os dois namorados ouviram curiosos e extáticos: -
- «Ai que amores tão chegadinhos,
Nesta noite de luar!
Ai que amores tão chegadinhos,
Eu vejo em baixo a nanar,
Abraçados um no outro,
A darem-se mil beijinhos,
No encontro que tiveram,
Quando corriam p'r'ó Mar!
O Lis encontrou a Lena,
Aqui junto ao Castelo;
O Lis encontrou a Lena,
E ficou cheio de pena,
Por ver um rosto tão belo,
Sem lhe poder chamar seu.
Ela caíu-lhe nos braços;
Ele nos braços lhe morreu.
Ai que amores tão chegadinhos,
Nesta noite de luar!
Dorme Lena com o Lis,
E, deste encontro feliz,
Vai nascer uma princeza,
Que há-de dar que falar, -
Senhora deste Castelo,
Da Lusitânia o mais belo.
Dos pais, que a hão-de embalar,
Será seu nome: - Leirena;
Dos pais que a hão-de embalar
E o corpo em água banhar,
(Dorme, Princeza morena!)
Terá destino feliz: -
Leiria, filha do Lis;
Leiria, filha do Lena!» -
E a noite luarenta atingira o seu zenite. Nem corvos a grasnar nas ameias do Castelo; nem rãs a coaxar no charco limoso; nem rouxinóis a ensaiar requebros nas franças dos salgueiros; nem a fada adivinha, a predizer o futuro daqueles dois amores. Rompeu a madrugada alviçareira; apagaram-se as estrelas no céu; brilhou de novo o Sol, e o Lis e a Lena, fiéis a um juramento ali firmado, jamais se separaram um do outro, seguindo o mesmo destino, fundidos num só coração e num só leito.
E de tão íntima e feliz união, nasceu, a seu tempo, e pequenina e afortunada Princeza - , legítima e universal herdeira de todas as prendas e peregrinas virtudes de seus progenitores. Cheia de graça e de beleza, sempre beijada com ternura, e no regaço macio do Lis e Lena, logo se foi a baptizar na vetusta igreja da Senhora da Pena, no lindo e artístico Castelo, que lhe foi atribuído como prenda, recebendo então na pia o nome patronímico de Leirena.
E, com o decorrer dos anos, tornou-se a moça mais requestada e pretendida de cem léguas em volta. Presta-lhe vassalagem e preito de admiração toda a parentela da Rota do Sol, fazendo-lhe, sem inveja, coroa de noiva, num abraço de amizade que, sem a envaidecer, a desvanece e contenta. Vêm visitá-la gentes de perto e de longe, e ela a todos acolhe com o mesmo gesto e o mesmo sorriso fidalgo de a mais encantadora, hospitaleira e simpática das outras muitas princezas da Terra Lusa. Felizes pais (Lis e Lena), que tal filha têm! (Leiria).

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